Panelas e Passarinhos

Martha Estima Scodro • 25/04/2020 • 5
Escrevi este conto em 2011, foi publicado na primeira coletânea do Mulherio das Letras pela Editora Mariposa em 2017.

O Mulherio das Letras, é um movimento nacional liderado por Maria Valéria Rezende que aconteceu em João Pessoa em outubro de 2017. A coletânea, organizada por Henriette Effenberger, foi um trabalho coletivo de edição, revisão e impressão.

A Editora Mariposa Cartonera (www.mariposacartonera.com) integra a Rede de Cartoneras, os livros são encadernados manualmente, numerados, feitos de papelão reciclado, de cooperativas de lixo reciclado.

Há alguns dias a Cris Lí­rica (facebook.com/cris.lirica e instagram.com/lircris/), me fez a bela surpresa de incluÃí-lo no seu projeto de leitura na quarentena.

A Cris não contou o conto com um ponto a mais, ela colocou outra alma ali dentro.

 

PANELAS E PASSARINHOS

Há tantos anos naquela casa, nem lembrava mais seu nome: Preta, era assim que a chamavam, levava no rosto a cor e o brilho das panelas, no colo, o calor da comida e aquela menina magrela, que batizou de Ana. Mas que já era a Pretinha.

Já de manhã juntava o miolo do pão que sobrava na mesa do café, passava na cozinha e pegava a cestinha com o farnel pronto. “Vai, vai, Pretinha, vai conversar com teus passarinhos”. Pretinha ia, mas deitava um olho comprido naquela cozinha. Às vezes ouvia: “Vai, que tenho mais o que fazer”, mas fingia-se surda e ficava por ali até ganhar um beijo.

Abria a cestinha e enchia o comedouro com o pão e os pedaços de fruta, limpava o bebedouro, derramava água fresca e sentava.

Setembro era seu mês predileto, os passarinhos batiam recorde de ocupação.

Em silêncio, Pretinha acompanhava todo o movimento deles: a construção do ninho graveto a graveto pelo pai e pela mãe, o chocar dos ovos - o pai atento mantendo guarda do lado de fora - o nascimento dos filhotes, o trabalho esfalfante de alimentar a prole de boca aberta, a piar desesperadamente e, finalmente a liberdade.

Quando os filhotes alçavam voo ouvia a saudade no canto dos pais. Às vezes, chegavam apressados, minhoca quentinha no bico e a boca tinha ido embora. Nesta hora Pretinha ficava triste, triste, mas não chorava.

Ela esperava o casal abandonar de vez o lugar, recolhia o ninho e o levava para seu quarto. A gaveta que guardava os ninhos guardava também uma panela de Preta, velha, torta, sem cabo.

Preta e Pretinha conheciam a solidão.
Martha Estima Scodro


#leitura #panelasepassarinhos #mulheriodasletras #Elas #devaneiomares

              

Comentários

Continue Navegando em Devaneios

Navegue em outros Mares

Cadastre-se
Receba semanalmente nossa newsletter e devaneie!